sexta-feira, 25 de março de 2011

Capítulo 23 - Em que me apaixono

Finalmente, passei a dar prioridade à minha vida, e fiz uma parceria com uma médica santista recém-formada, com seus trinta anos, 17 a menos que eu, e que vinha de uma família rica. Isso foi o fator principal, era rica. Eu precisava de dinheiro, ela de experiência. Enfim, montamos um grande consultório em Santos, e minha renda aumentou. A princípio, nem mesmo precisávamos de secretárias, pois poucas pessoas iam lá, mas com o término de um mês, já tínhamos mais pacientes que eu conseguira ter em todos os anos anteriores.
            Contratamos uma funcionária, a Irene, que trabalhava em minha casa quando eu ainda morava na Vila Fabril. Ela não entendia muito bem o serviço, mas se empenhou bastante, e conseguiu ser competente o suficiente. E veja que para essas coisas de eficiência sou realmente chato. Ou a pessoa é eficiente, ou não serve para mim. Toda essa capacidade de superação de Irene me surpreendia. Cada dia que passava, ela se portava melhor ainda. Algumas vezes parecia mais médica que Isabela (minha parceira), com sua roupa branca comum, seu cabelo ruim, mas sempre bem arrumadinho, enfim, aquela postura elegante que não era comum em empregados mal alfabetizados.
            Dia após dia, minha admiração por Irene crescia geometricamente. Isabela viu essa admiração surgir da pena, evoluir à compaixão, e perder as três primeiras letras. Enfim, me apaixonei por minha secretária. Ela não era linda, nem tinha os olhos azuis, que tanto amava, mas tinha algo diferente, algo que você dificilmente encontra nas pessoas, algo que dificilmente você encontrará em si mesmo... ela tinha boa vontade.
            Seus cabelos ruins já não eram assim tão feios; seu nariz achatado parecia-me até um pouco arrebitado; sua boca grosseira não estava tão feia quanto nos dias anteriores; e sua força de vontade estava mais forte a cada dia, tão forte que chegava a me soterrar.
            Um dia, 12 de junho, criei coragem e, antes de ir ao trabalho, comprei uma rosa, que estava longe de ser a flor mais bonita da Floricultura Cubatense, mas que era a mais bonita que eu me dispunha a comprar. Comprei ainda um pequeno cartãozinho em branco, onde escrevi: “Para Irene, mulher que esteve ao meu lado todos esses anos!”. Sabia que isso não era uma verdade completa, mas mais vale uma meia verdade que agrada, a uma verdade completa que não o faz. Quando cheguei no consultório, não havia pacientes, ou não os notei, nem mesmo Isabela havia chegado, eu acho. Aproveitei a situação, me aproximei de Irene, segurei as suas mãos grossas e a coloquei em pé. Olhei bem em seus olhos, reprimi o impulso de secar a gota de suor que escorria na minha testa, e entreguei-lhe a flor. Não precisei dizer uma só palavra para que seus olhos se enchessem de lágrimas. Ela me olhou e respondeu à torrente de dúvidas que passaram pela minha cabeça naquela hora com um simples beijo... na flor.

sábado, 19 de março de 2011

Capítulo 22 - Mudanças

Nem preciso lhes dizer a reação do compadre... vou resumir a história, para não pecar em detalhes inúteis ou falsos: Sr. Rafael saiu de minha casa e correu à sua para contar tudo ao compadre. Algumas horas depois, ele me aparece, com duas malas feitas, em frente à minha casa. O Compadre, com seu maldito orgulho inglês, havia expulsado o pobre menino de sua casa. Seus olhos estavam vermelhos do choro e seu rosto marcado por tapas. Não havia outra coisa a ser feita, eu o acolhi como faria a qualquer pessoa que me aparecesse desamparada. Agora ele e meu primo moravam no mesmo quarto.
            A princípio, tudo deu certo. Meu primo e ele se deram bem, sem maiores problemas. Os problemas de verdade eram conseqüências do escândalo que tudo aquilo provocou. Estávamos entrando na década de 80, e o povo ainda era muito mexeriqueiro. Ninguém que tivesse escolha queria se cuidar com o “padrinho do dito cujo”, que acolheu um “doidivanas” em casa, e que ainda por cima vivia dando dinheiro para uma “mulher fácil” não fazer ainda mais escândalos. Realmente, eu fiz tudo isso, mas não preocupado comigo mesmo, e sim com meu afilhado, que não podia viver sendo ridicularizado por morar com uma prostituta.
            Meu primo se foi... juntou umas economias (sempre foi muito bom nisso), e se foi, sem sequer se despedir. Isso não era de se estranhar, pois ele detestava despedidas. Deixou apenas uma carta, dizendo que gostava muito de mim, e que um dia ainda me agradeceria por tudo que fiz a ele. Senti-me arrasado, pensando que a culpa de tudo aquilo era minha. Porém, algo maior me tirou esse peso da consciência, o pequeno bebê de Sr. Rafael, que recebeu o nome de Pedro.
            Assim que esse moleque nasceu, Sr. Rafael me disse: “Ou fico com ele aqui, ou fora daqui!”. Eu fiquei de mãos atadas, sem saber como agir: não deixaria meu afilhado desamparado nas ruas cubatenses, assim como não deveria deixar o fruto de uma aventura viver em minha casa. Porém, como vocês sabem que coração de padrinho é mole, ele venceu, e o moleque passou a morar conosco.
            Essa história não se prolongou muito, pois algumas semanas depois, a mãe do moleque veio pegá-lo de volta, dizendo que se enganou, e que ele era filho de outro rapaz. Sr. Rafael chorou durante semanas, nem sequer saía de casa. Dizia não ter coragem para encarar os outros na rua. Porém, essa fase passou, e ele, como todo jovem aventureiro, se recuperou completamente. Creio que hoje nem mesmo se lembra de tal aventura.

Capítulo 21 - Um Novo Bebê

Sr. Rafael sempre se apaixonava pelas mulheres erradas, e largava as certas. Uma vez isso lhe deu uma grande dor de cabeça. Ele tinha pouco mais de 20 anos, e ainda não tinha um emprego sério, trabalhava ajudando o Compadre. Natural que um garoto como ele não trabalhe para uma firma de verdade, afinal... não havia necessidade. Sua vida se resumia às casas noturnas. Ele as adorava, assim como eu. Era um frequentador assíduo, enquanto eu quase nunca tinha verba sobrando. Um dia, ele chegou com uma notícia para mim: uma das mulheres de programa com quem ele saía engravidara. Ele não sabia o que fazer, pois tinha certeza que o filho era dele. Quando lhe questionei a paternidade, ele me disse que ela não o trairia, que era uma pessoa em quem ele muito confiava. Tentei fazê-lo entender que o trabalho dela era aquele, e que ela não tinha nenhum envolvimento amoroso com ele, mas a tentativa foi em vão. Ele tinha certeza que era pai da criança. Enfim, me disse que contaria tudo ao Compadre, e que ele haveria de entender. Eu pedi para deixar essa história rolar mais um pouco, mas como todo bom adolescente, não deu ouvidos ao adulto, e correu a contar ao Compadre.

Capítulo 20 - A vergonha volta à tona

Eu mal podia viver graças à vergonha. Não pela vassourada que Sr. Rafael deu no moleque, nem mesmo por ter sido demitido, mas sim por ter de voltar àquela casa, que já era do Compadre por direito. Mais uma vez engoli a vergonha e vivi uma grande humilhação. Hoje não vejo isso como uma vergonha tão grande que não possa ser superada, mas acredite, naquela época, isso fazia todo o sentido!
            Vivi essa minha vida insignificante, assim como vivi a vida de meu querido afilhado... Foi uma felicidade tão grande ir à sua formatura... Tudo muito simples, como era costume, mas também muito bonito. Não chorei, pois homens não choram. Hoje, já sem esses escrúpulos, lhes confesso que chorei sim, escondido no banheiro da minha casa. Foi realmente emocionante, quando no agradecimento aos pais, ele citou os nomes do Compadre, da Comadre, e o meu, dizendo que era um segundo pai para ele. Ele acabara de se formar no nível ginasial e já tinha 15 anos! Juntei minhas economias, que não renderam uma soma muito grande, e comprei a bicicleta que ele tanto pedia ao compadre, e que esse se negava a comprar, mandando-o usar a bicicleta velha que eles tinham.
            Alguns anos depois, quando ele já estava no último ano do nível colegial, eu o levei para o lado noturno da cidade... Aqueles seus cabelos loiros e longos foram a atração das casas por onde passava. Ele adorou essa parte “obscura” da cidade, assim como eu, na primeira vez em que lá fui.
            Sempre tive muito orgulho dele, até mesmo quando descobria coisas realmente horríveis, como quando soube que ele havia levado uma mulher da vida para dentro da casa do Compadre, para que ela jantasse bem, antes de fazer seu serviço. Nem preciso dizer a reação do Compadre que, se eu não chegasse na hora decisiva, tinha feito com Sr. Rafael o mesmo que fez com D. Maria. Depois de uma longa conversa, fiz o Compadre entender que ele era apenas um garoto sem juízo, como todos os outros.
            Ele sempre teve um companheiro para guiar-lhe os passos. Quando uma dúvida surgia, ele corria até mim, e fazia a pergunta; quando brigava com seu pai, corria para minha casa, me contar o que houve, e pedir minha opinião, que ele já sabia que seria completamente parcial a seu favor.
            Assim, vi aquele pequeno bebê virar criança, que virou um lindo adolescente, que fazia sucesso com tudo e com todas. Na verdade, não sei se isso é uma vantagem assim tão grande...

Capítulo 19 - A Confusão

Esse garoto, o “Henrique”, era realmente prepotente. Eu não o tolerava por ver o que ele fazia com meu afilhado. Enfim, quando Sr. Rafael estava já no 5º ano, ouvi uma gritaria em minha rua. Eu e Irene saímos para a rua, correndo para ver o que estava acontecendo. Quando chegamos lá, estava Sr. Rafael no chão, apanhando desse garoto. Eu não me controlei, e fui separar a briga. Eu segurei o menino, e quando vi, Sr. Rafael pegou a vassoura, que estava nas mãos de Irene, e a quebrou na cabeça do menino.
            Não preciso dizer que, depois do ocorrido, eu tive que me mudar da Vila Fabril para evitar mais confusões. Fui para a casa do Compadre, ou melhor, minha antiga casa...

terça-feira, 15 de março de 2011

Pequena intervenção

Olá Pessoal, Bom dia!

   Agora sou eu mesmo, Caio (Kyo), que estou falando. Só estou postando essa intervenção na história para pedir desculpas, pois as postagens não serão tão frequentes, de segunda a quinta, como foram semana passada. Isso acontece pq passo o dia na Usp, e quando chego em casa já está quase na hora de ir dormir... mas tentarei postar sempre que possível. De qualquer maneira, garanto que nenhuma semana se encerrará sem ao menos 7 capítulos serem postados. O que não conseguir postar de segunda a quinta, compensarei na sexta.
    Também quero agradecer aos que estão deixando comentários no blog ou enviando-os por e-mail (caio.cesaresouza@yahoo.com.br) para mim. Leio todos mas fica difícil responder durante a semana, pelo mesmo motivo da falta de postagens. Mas, nos fins de semana responderei, com certeza.

Um abraço, e continuem com o Dr. Marmota.

domingo, 13 de março de 2011

Capítulo 18 - Escola

            Um aniversário de sete anos significa mais que o de seis ou o de oito... significa a entrada da criança em uma escola. Com Sr. Rafael não foi diferente. Devo lhes dizer que ele aulas. Não posso o criticar, porque sempre achei a gramática chata também. É claro que nunca simpatizou com a escola, principalmente com a aula de português. Ele já sabia escrever, pois eu havia ensinado um ano antes, mas mesmo assim detestava essas disse isso a ele.
            Matemática era o paraíso para ele. Já fazia contas mais difíceis que o resto da sala. Isso me orgulhava muito, principalmente por saber que ele devia grande parte desse processo acelerado a mim, que sempre o incentivava. No que dependesse do Compadre, ele ficaria no mesmo ritmo da classe.
            Só havia um grande problema na escola: um menino chamado... serei sincero, não me lembro seu nome... digamos que seja Henrique. Não, não era Henrique, mas graças à minha ingrata memória, o apelidaremos de Henrique. Esse garoto sempre ameaçava Sr. Rafael, dizendo que seu pai, meu chefe na fabrica, ia me demitir, que ia me expulsar daquela casa... enfim, que ia fazer mil coisas ruins contra mim e contra o Compadre. Isso é o que Sr. Rafael me contou na época. Enquanto essas brigas estavam somente no papel, tudo estava bem. Porém, como já lhes disse, que uma felicidade nunca está desacompanhada de uma tristeza... essa guerra eclodiu, causando estragos mais arrasadores para nós que a última Grande Guerra.

Capítulo 17 - A Festa

Mais uma vez eu estava me perdendo na narração. Perdoe-me, mas minha idade já não ajuda. Enfim, volto o foco da história para o verdadeiro protagonista: Sr. Rafael.
            Lembro-me como se fosse hoje do sétimo aniversário dele... Foi em minha casa. Uma festa pequena, até porque não conhecíamos muita gente. Porém, foi muito bonita... Irene providenciou tudo para a festinha enquanto eu, ele, meu primo, que já tinha completado 15 anos, e o Compadre fomos à praia. A alegria dele era algo que deixava todos que estavam ao redor felizes. Hoje, um passeio à praia é algo simples, pequeno, e até mesmo rotineiro. Na época, era o melhor presente que ele podia ganhar. Passamos todo o dia na praia, algo que me custou caro, tanto financeiramente como fisicamente. Passei cerca de uma semana com as costas ardendo. Depois disso, voltamos para minha casa. Quando chegamos lá, ele teve a maior surpresa: toda a sala de jantar estava enfeitada com bexigas e serpentinas azuis, sua cor predileta. Ele mal sabia para que olhar. Confesso que até eu me surpreendi. Irene estava sentada em uma cadeira, com o rosto molhado de suor. Ela se levantou, e deu um beijo em Sr. Rafael. Ele olhava das paredes para o bolo, do bolo para os docinhos, dos doces para os salgados, dos salgados para mim e para o compadre. Meu primo estava extasiado, sem saber se agarrava meu braço ou se corria para brincar. A voz do compadre respondeu a questão: - O que estão esperando? Corram! Brinquem!
            A festa durou até o amanhecer, quando meu primo e meu afilhado caíram no chão, exaustos de tanto correr e brincar. Essa foi a melhor festa de aniversário de minha vida!

sexta-feira, 11 de março de 2011

Capítulo 16 - Olhos Azuis

Você já deve ter visto que eu praticamente só convivia com homens nessa época. Um homem tem necessidade de estar ao lado de uma mulher. E em meu caso não era somente necessidade física, mas também era social. Um solteirão de vinte e poucos anos, quase trinta,  como eu não era bem visto socialmente. Os homens me queriam longe de suas casas, para evitar contato com suas mulheres. As mulheres solteiras me queriam o mais longe possível delas, para evitar que o povo falasse. Eu só queria viver em paz, mas era extremamente difícil, sendo excluído por vários.
            Então vejo uma mulher vindo a meu encontro enquanto caminhava pelo centro de Cubatão (já emancipada). Nossos olhos se encontram. Seus olhos eram azuis, mas não eram somente azuis... tinham um brilho extravagante, como eu nunca tinha visto antes. Ela me olhou de tal maneira, que me enlaçou logo de cara. Não tive como fugir daqueles lindos olhos azuis. Ela mesma não era bonita, nem alta, muito menos magra. Era baixinha, gorda, e usava aquelas saias, dignas das beatas de igreja. Porém, além de tudo isso, ela tinha os olhos azuis, que agora já eram donos de meu coração. Ela era mais nova que eu. Era também considerada solteirona da cidade. Quando reparou que nossos olhos se encontraram, ela olhou para baixo, contradizendo seu sangue, que fez questão de lhe subir para o rosto. Fiquei olhando, de maneira discreta, para que ninguém reparasse. Não, eu não achava que ela me faria feliz, nem mesmo que ela fosse uma mulher que cumpriria suas obrigações. Porém, ela tinha aqueles lindos olhos azuis... Isso justificava tudo!

Capítulo 15 - Acertos

Agora a minha vida começa, finalmente, a se acertar. Aceitei a proposta da Santista e me mudei para uma casa na vila Fabril, que era mais próxima de meu trabalho. Acabei aceitando também a proposta do Compadre, e lhe vendi minha outra casa. Com esse dinheiro, paguei minhas dívidas, podendo andar novamente pelas ruas com a cabeça erguida.
            A única coisa que me preocupava era o contato com Sr. Rafael. Eu não queria ficar longe do meu afilhado, mas também não podia continuar aquela vida indigna que levava outrora. Então acabei conseguindo a conciliação das duas coisas: meu turno na fábrica era de segunda à sexta, alguns dias na parte da tarde, outros na parte da manhã. Então, tinha meus sábados e domingos livres, para me divertir com minha família, que se resumia agora a meu primo, o compadre, e meu afilhado. Ah! como fui feliz aquela época! O Compadre dava grandes jantares em sua casa aos domingos, e eu mandava minha empregada fazer um excelente almoço aos sábados na minha casa. Esse almoço se estendia até a noite cair, quando o Compadre tinha de ir embora.
            Meu primo ficava sob responsabilidade de Irene, minha empregada, a mesma que preparava os almoços aos sábados. Eles se davam muito bem, e isso me tirava um enorme peso das costas. Essa mulher muito me ajudou durante minha vida. Quando não pude contar com mais ninguém, ela me apareceu, oferecendo ajuda... Oh! Céus! Lá vou eu, novamente adiantando os fatos.
            Porém, o que importa é que, finalmente, consegui acertar em algo na minha vida. Tinha uma boa casa, uma boa família, e, graças a meu compadre, uma boa reputação.

quarta-feira, 9 de março de 2011

Capítulo 14 - Rio Tâmisa

            Provavelmente, você está pensando algo do tipo “coitada...” ou ainda “ Como Edgard é frio!”. Acredite, na época em que estávamos, ela teve muita sorte de ter sido somente expulsa de casa. Isso era uma humilhação gigantesca! Se ela fosse minha irmã, eu faria o mesmo, ainda mais levando em conta seu passado, que era tão limpo que se confundia com o Tâmisa, na era da luz.

Capítulo 13 - Da Vergonha

Como já lhes disse, D. Maria era um peso morto no mundo. Só o que fazia bem (e como) era fazer o Compadre passar vergonha. Certo dia, eu, Sr. Rafael, Edgard, D. Maria, e meu primo estávamos na quitanda, comprando algumas verduras que estavam acabando. D. Maria, como já era de costume, saía mexendo em tudo. Pegava uma maçã, misturava com as peras; pegava uma melancia e colocava em uma prateleira vazia; e tudo isso só para “passar o tempo”. Então, enquanto ela escondia várias coisas, nós nos preocupávamos com coisas realmente sérias como o machucado na batata, o broto na cebola, etc. No fim, fomos pagar. Eis aí o dia que vi o Compadre realmente perder a cabeça. Fomos até o seu Zé, dono da quitanda. Quando chegamos lá, ele disse o preço, e acrescentou: - Isso sem contar com a maçã que a senhora sua irmã comeu, e a outra, que ela escondeu em baixo da saia! O Compadre olhou para ela, como se tivesse levado uma pancada no rosto, que tivesse feito todo o seu sangue se esvair de suas veias: - Devolva o que você está escondendo mulher!
            -Mas, mano, eu não estou escondendo nada!
            O Compadre pôs a mão no ombro de sua irmã, e a empurrou. Com a queda (Que não foi das menores) uma maçã saiu rolando, de baixo da saia de D. Maria. O Compadre abaixou a cabeça, se sentindo humilhado, e pegou todo o dinheiro que trazia na carteira, entregando para seu Zé, como forma de pagamento pela atitude da irmã, que não contente com o que tinha feito, antes de se levantar pegou a maçã, e saiu da quitanda comendo-a.
            Ao chegar à casa do compadre, em silêncio absoluto (interrompido somente pelas pequeninas e vorazes dentadas de D.Maria), o compadre disse-me “Meu amigo, por favor, leve as crianças para o quarto, que tenho que trocar umas palavras com minha... com essa mulher.” Eu levei as crianças ao quarto, e voltei para a sala. Quando cheguei lá, D. Maria estava sentada, com uma expressão de descaso no rosto, ainda comendo a metade da maçã, que restava. O Compadre começou um sermão para ela, que o interrompeu, dizendo “Mano, estou sentida com o que aconteceu, mas só o fiz porque você é avarento, e não compra as minhas maçãs, que já lhe disse que me fazem tão bem!” Quando ela acabou de dizer isso, o compadre lhe deu uma bofetada tão grande, que a metade que ela comia da maçã entrou inteira em sua boca, fazendo-a engasgar.

            -Suma de minha casa, sua... sua... mulher da vida!

            Hoje, essas palavras não significam nada, mas na época significavam muito. Mulher da vida era o pior xingamento para qualquer mulher. E para que o compadre a chamasse assim, acreditem, foi muito difícil!
            Então, ainda pasma e engasgada, D. Maria foi jogada, literalmente, para fora da casa. Suas roupas não foram levadas a não ser pelo lixeiro, que as levou em um grande saco de farinha, no outro dia.  Agora, D. Maria estava sem um teto para morar, graças a sua má índole.

Capítulo 12 - Novidades

Esse livro não é sobre mim, e sim sobre meu querido afilhado, Sr. Rafael. Então, tiremos o enfoque dessa criatura desprezível que vos fala, e voltemos para quem realmente interessa.
            Sr. Rafael já andava, não tão bem, mas já conseguia dar pequenos passos. Quando se desequilibrava e caia, não chorava, ao contrário, passava a se arrastar sentado, até chegar a seu destino. Essa força de vontade dele era algo que muito me agradava, assim como agradava ao Compadre, que dizia que esse não seria mais um vagabundo no mundo, dizia que esse sim lhe daria orgulho. Ah... se meu compadre soubesse... Lá vou eu, novamente me adiantando... voltemos à época correta.

segunda-feira, 7 de março de 2011

Capítulo 11 - Que aceito

            Infelizmente, como você já deve ter imaginado, fui obrigado a aceitar a proposta. Era minha única bóia, em um mar de dívidas! Sim, novamente me humilhei graças ao dinheiro! Maldito dinheiro! É a causa de quase todas as alegrias e tristezas da vida de um homem.
            Nunca tomei decisão mais difícil que essa. Acredite, pois é verdade!

Capítulo 10 - Do Emprego

Não sei se já lhes disse, mas devo todo meu conforto ao Sr. Edgar. Naquele dia, ele simplesmente se levantou e saiu de minha casa. Só nos encontramos novamente uma semana depois, quando ele apareceu com uma ótima notícia: “Lhe arranjei um emprego na Santista de Papel!”. Mal pude acreditar... a Santista era uma das maiores fábricas de Cubatão. Nunca havia sonhado com aquilo. Então, só o que pude fazer era agradecer-lhe. E acreditem, não há coisa mais difícil que isso! Para um homem daquela época, era uma verdadeira humilhação fazer o que eu fiz, aceitar um favor de alguém para pagar se sustentar. Porém, eu não estava em posição de ter orgulho. As dívidas somente aumentavam, e o dinheiro, que já não existia, parecia diminuir.
            O emprego me ajudava muito, mas não resolvia meus problemas. Eu precisava de uma boa quantia de dinheiro de uma só vez, para poder pagar todas as minhas dívidas. Porém, não contava com uma coisa:

            -Eduardo, disse Edgard, você sabe que pode morar na Vila Fabril, não sabe?
            -Sei sim, senhor, mas acho que ficarei aqui, por ser perto de sua casa. Não quero perder contato com meu afilhado!
            -Meu amigo, você gosta de complicar as coisas... tudo bem, façamos o seguinte: Eu quero uma casa, você quer dinheiro. Unamos o útil ao agradável! Eu lhe compro essa casa, e você pode continuar morando aqui!
            -Nunca! Compadre, eu não posso aceitar tamanha humilhação! Isso não é negociável! Eu trabalho e consigo o dinheiro para pagar minhas dívidas! Mesmo que demore um pouco mais! Não posso aceitar, compadre! Não mesmo!

domingo, 6 de março de 2011

Capítulo 9 - ... Dinheiro

Em Cubatão, era muito difícil você exercer qualquer profissão por sua conta, principalmente ser médico. A família Ruivo, uma das tradicionais da cidade, tinha o médico mais famoso daqui, o Dr. Mário Ruivo. Era um excelente médico, considerando os recursos que dispúnhamos na época. Estava sempre pronto para atender qualquer paciente. Atendia inclusive pacientes que não tinham como lhe pagar. Isso era ótimo para o povo e péssimo para mim. Por ser inexperiente, poucas pessoas me procuravam, ainda mais depois do ocorrido no parto.
            Graças a isso, dinheiro passou de solução a problema. Eu adorava receber meu afilhado em casa, assim como adorava viver com meu primo, porém o dinheiro que eu tinha começou a se esvair. Não, não coloquem a culpa em Edgard, ele nem mesmo sabia disso. Então, comecei a me endividar cada vez mais. Eu fazia de tudo para pagar minhas dívidas, mas não conseguia. Eu me senti entrando em um buraco cada vez mais fundo. Quanto mais eu lutava para sair dele, mais eu entrava. Porém, não poderia deixar que Edgard descobrisse isso. Imaginem só... ele não viria mais almoçar em minha casa, e eu perderia a maravilhosa companhia de Sr. Rafael!
            Porém, um dia, isso foi inevitável. Ele entrou em minha casa, e eu estava na sala de jantar, aproveitando que Rafael estava dormindo, para fazer algumas contas. Eu não o ouvi chegar, e quando me dei conta, ele já estava mexendo em meus papéis. Desesperei-me:

            -Edgard, como você entra assim em minha casa, sem ao menos me avisar!
            -Eduardo, fique quieto! Que contas são essas?
            -Eh... São apenas umas dívidas, nada demais. Deixe isso aqui – disse eu, já amontoando aquela pilha de papei a um canto. – E então, que bons ventos o trazem aqui?
            -Não são bons ventos, são maus. O dono do açougue foi falar comigo, para saber onde você estava, porque ele já bateu aqui três dias seguidos, para lhe fazer uma cobrança, e ninguém o atendeu.

            Senti meu rosto pegar fogo... não sabia mais o que fazer. E então, fiz o correto:

            -Edgard, eu estou em um buraco de dívidas. Ninguém procura meus serviços, ninguém confia em mim. Veja! – disse eu, mostrando o valor de minhas dívidas. – Eu nunca conseguirei esse dinheiro! Creio que nem minha casa vale isso!
            -Não se preocupe meu amigo – disse Edgard, se levantando, como se tivesse uma excelente idéia. – essa tristeza dura pouco! Darei um jeito!
            -Não senhor! Eu não quero dinheiro!
            -Quem falou em dinheiro?

Capítulo 8 - Continuando...

            Bem, como vimos há algumas linhas, meu tio morreu e meu primo veio morar comigo. Creio que essa foi a época mais feliz de minha vida, morando perto de meu afilhado - que a essas alturas, já arriscava falar alguma coisa, assim como já engatinhava - e também morar junto com meu primo, que só me trouxe alegrias, durante toda a sua vida.
            Era algo comum, agora que meu primo morava aqui em casa, ver Sr. Edgar e Sr. Rafael virem almoçar. Isso era algo que muito me alegrava. Todos os dias, quando Sr. Rafael passava pela porta, já esticava os braços para mim. Fui como um tio para ele. Sempre gostou muito de mim, do meu colo, enfim, de tudo. Sr. Edgar falava: - Qualquer dia esse moleque me mata, só para vir morar aqui! Todos esses comentários me agradavam, eu achava engraçado... porém, magoavam e muito o meu primo Rafael. Mas, com o tempo ele aprendeu que Edgard era assim mesmo, não se entendia muito bem com as palavras, a não ser quando era para criticar padres.
            Como disse, minha vida estava indo muito bem, porém havia algo que muito me preocupava...

sábado, 5 de março de 2011

Capítulo 7 - Pequena Pausa

Eis aqui outro capítulo breve, que se dedica somente a diferenciar meu primo Rafael de meu afilhado Rafael. Chamemos, a partir de agora, meu afilhado de Sr. Rafael. Sei que é estranho um padrinho chamar um afilhado de senhor, mas... visto os fatos que aconteceram depois, faz muito sentido

Capítulo 6 - Do enterro

Eis aqui um capítulo que não perderei tempo narrando, por dois motivos: 1- todos sabem como são os enterros; 2- eu não fui a esse enterro... meu tio não merecia tal esforço.

Capítulo 5 - Da Vida

Meu amigo, saiba que na vida - ao menos em minha vida - a alegria e a tristeza são parceiras inseparáveis. São raras as vezes que ambas estão presentes em sua vida ao mesmo tempo, com a mesma intensidade. Porém, saiba disso, pois eu demorei muito para aprender, elas nunca estão muito distantes. Uma alegria tão grandiosa, como a que tive com o batizado de Rafael, é sempre acompanhada de uma tristeza igualmente grande. Lembro-me de ter lido isso em algum livro... e é a mais pura verdade, pois foi isso que comigo aconteceu.
            Em um domingo, acordei, me aprontei, e fui me dirigindo a casa de Sr. Edgar. Quando estava saindo de casa, um moleque, o mesmo que me trouxe aquele primeiro recado, veio me entregar uma carta. O remetente era o vizinho da casa de meu tio. Assustei-me, pois não haveria motivo para aquele velho ignorante, que odeia a ciência, e que vivia difamando os médicos, falando que nossos remédios só matavam os pacientes mais rapidamente, enfim, não havia motivo para ele me escrever uma carta. Eu a abri. Poupo o leitor de uma falsa representação da carta, pois nem mesmo eu me lembro de como a notícia foi dada, porém, eis o fato interessante: meu tio estava morto, e meu primo, o Rafael, sem ter com quem morar. Ele tinha apenas sete anos na época. Enfim, após me sentir um pouco mal (mais por meu primo que por meu tio hipócrita) mandei o moleque buscar Rafael, o primo, para que viesse morar comigo.

Capítulo 4 - Do Batismo

            Com o ocorrido no parto, achei que Edgar iria se afastar de mim e, por precaução, me afastei dele. Sei que não tem muito sentido, mas na época foi a única coisa que me passou pela cabeça. Então, para a minha surpresa, cerca de uma semana depois, um moleque bateu à minha porta. Quando abri, ele me disse:

            -Doutor Marmota, o Senhor Edgar quer falar com o senhor!

            Após dar um peteleco no moleque, me arrumei, achando que poderia ser alguma emergência médica, e fui para lá. Quando cheguei, encontrei Senhor Edgar sentado na sala, me esperando.

            -Doutor, por que você sumiu daqui?
            -Bem, eu tenho andado muito ocupado... o senhor sabe, coisas de médico...
            -Entendo... bem, espero que você arrume tempo livre para vir visitar seu afilhado. Não quero que meu filho tenha um padrinho ausente.
            -Como? O senhor vai batizar o moleque?
            -Sim. Não me agrada a ideia, mas batizarei. Não quero que ele sofra depois o tanto que sofro até hoje!
            -Senhor Edgar, eu nem sei o que dizer...
            -Então não diga!
            -Será uma honra ser seu compadre!

            E realmente era. Sempre o fui, de certa forma, já que o compadre era apenas aquele homem que apenas aparecia para comer e falar sobre coisas inúteis. Mas agora seria oficial. E, para mim, aquilo era ainda mais significativo... eu seria padrinho de um moleque que eu mesmo vi nascer. Seria padrinho do fruto de meu primeiro parto.
            Quanto ao nome, eu escolhi Rafael porque esse é o nome de um primo meu, que é muito apegado a mim. Eu quis homenageá-lo. Ah, se eu soubesse o que aconteceria depois... bem, não adiantemos os fatos. O importante é que esse nome foi aprovado por Sr. Edgar, e por sua irmã (que se pronunciou, mesmo sem ninguém ter pedido a sua opinião).
            No dia do batizado, tudo ocorreu muito bem, eu vesti meu melhor terno, assim como todos que estavam assistindo. Naquela época, o padre Baltazar era responsável pela Nossa Senhora da Lapa, e ele celebrou o batizado. Devo dizer que me atrapalhei um pouco na hora de segurar o bebê, mas de resto tudo foi normal. Muitas pessoas se emocionaram durante a missa. Quando saímos, D. Maria (irmã de Sr. Edgar) fez questão de dizer, de uma maneira muito cristã: “Essa missa me fez repensar minhas atitudes, mano. Deus me revelou que eu sou muito ambiciosa, e devo fazer mais caridades”. Porém, essa revelação não foi forte o bastante. Quando cruzamos a escadaria da igreja, um mendigo veio choramingando padre nossos, para ganhar alguma esmola, e o máximo que conseguiu de D.Maria foi uma bela “sombrinhada” na cabeça.

sexta-feira, 4 de março de 2011

Capítulo 3 - Do Bairro

            Ah, que maravilha! Chegamos, enfim, ao assunto que mais me agrada de todo o livro: O Bairro. Não, não era um lugar bom de viver. Na realidade, nem mesmo existia naquela época. Acalme-se, leitor, pois eu explicarei. Nessa época, Cubatão não era uma cidade, era apenas um bairro. Isso mesmo! Cubatão só foi emancipada em 1959. Nós estamos ainda no ano de 1955. Porém, mesmo que Cubatão ainda não existisse, já era grande o suficiente para ter pequenas divisões.
           Tudo isso aconteceu pelas redondezas de onde hoje é o Jardim Costa e Silva. Sempre foi uma área engraçada... Primeiro, era marcada por fofocas de vizinhos (como é até hoje, sendo que muitas das mulheres daquela época ainda vivem no mesmo bairro), e, depois, por brigas (muitas vezes resultados das fofocas). Era algo realmente engraçado de se ver! Brigava-se por assuntos tão pequenos, por pequenas visitas, por conversas, e até mesmo por comida. Sim, por comida! Na casa de Rafael, antes de ele nascer, como já disse, era comum o padre Baltazar lá almoçar. Se o padre comia muito, Edgar esbravejava: “Diabo! E ainda reclamam dos comunistas! O problema do mundo são os padres! Esses sim! Plantam a miséria na casa dos outros! Vejam só! Três coxas de frango! Malditos sejam os padres!” se comia pouco: “Ora, esse desgraçado, não contente em me dar o desgosto de o ter aqui dentro, ainda faz desfeita com a comida de minha mulher! Lhe digo doutor: Esses malditos padres vão todos para o inferno! Não que eu acredite nisso, é claro!” Enfim, era algo realmente muito engraçado de se ver. Por volta do ano de 1960, me mudei para lá, para ficar mais perto de meu afilhado. Ah, sim! Sabia que havia me esquecido de dizer algo...

Capítulo 2 - Da Família

A família de Rafael era uma típica família paulista. Os membros prezavam a moral e os bons costumes, mesmo que muitas vezes não os seguissem. Assim que a mãe morreu, tive que dar a notícia para o pai. Seu nome é Frederich Edgard, porém aqui em Cubatão, ou melhor, em nosso bairro, era conhecido simplesmente por Senhor Edgar. Quando me aproximei dele para dar a notícia da morte da esposa, comecei a tremer muito, creio que graças à inexperiência. Fiquei durante algum tempo olhando-o, sem saber direito como dar a notícia. Aquele diálogo foi um dos mais difíceis de minha vida, embora não tão interessante para vocês. Lembro-me dele até hoje:

            -Senhor Edgar, seu filho nasceu.
            -Mas que maravilha! Como ele está?
            -Bem, bem... é um rapagão. Dará-lhe muito orgulho! Porém...
            -E Josefa, como está?
            -Era sobre isso que eu queria lhe falar... o senhor tem que entender que em um parto, a mulher perde muito sangue, fica muito exausta, é realmente algo difícil.
            -Eu entendo!
            -E, às vezes, muitas vezes, coisas ruins acontecem durante um parto...
            -Entendo!
            -Então, esse parto não foi diferente de nenhum outro, mesmo que queiramos, não podemos mudar o destino...
            -Como está Josefa?
            -Ela teve uma grande hemorragia, que não consegui estancar. Eu fiz tudo que pude senhor, realmente fiz, mas...
            -Entendo, era a vontade de Deus! – Disse Edgar, um ateu, ironicamente, fazendo força para não chorar na frente de estranhos. Não poderia demonstrar fraqueza assim. Isso não era digno de um homem.

            Senti-me muito mal aquele dia por perder minha primeira paciente gestante. Sei que se tivesse a experiência e os recursos que tenho hoje, não a teria perdido. Porém, na situação, não tinha nada a se fazer.
            Voltemos ao tema principal do capítulo: A família de Rafael. Era uma família muito engraçada de se observar. Sr. Edgar era um homem conservador, que seguia as normas britânicas quase ao pé da letra. Não tinha religião, e odiava todo o tipo de crendice católica. Esbravejava contra a mania dos padres de dizer que tudo ruim que acontecia não era culpa da pessoa, mas sim do demônio, e tudo de bom que acontecesse eram “bênçãos divinas”.
            A mãe de Rafael, Dona Josefa, era uma “católica de muita virtude” como diziam suas amigas da igreja. Saia todas as manhãs para ir até a Nossa Senhora da Lapa, no centro da cidade, assistir a missa, e tomar a bênção para aguentar “as tentações do demônio”. Isso era motivo de briga na família. Todos os dias em que o padre Baltazar vinha almoçar em sua casa, ainda com a batina, Edgar gritava da janela ao lado, vendo-o se aproximar na rua “Lá vem a galinha preta devorar meu frango!” E então, começavam as brigas. Dona Josefa sempre tinha seus argumentos baseados nas Sagradas Escrituras, e Sr. Edgar tinha os seus baseados na “Sagrada Verdade”, como ele dizia.
            Sr. Edgar não tinha irmãos verdadeiros no Brasil, somente uma irmã bastarda, que era sua verdadeira dor de cabeça. Como ele costumava dizer, “a mana é um grande peso morto no mundo, e bota grande nisso”. Realmente, era uma velha imprestável, que não fazia senão choramingar suas desgraças. Porém, não é importante para a nossa história, ao menos, não agora.
            Agora, todas essas brigas familiares estavam perdidas, já que Sra. D. Josefa morreu no parto.

quinta-feira, 3 de março de 2011

Capítulo I - Do Parto

Senhor Rafael Gonçalves era um homem gordo, fanfarrão, que sempre estava rodeado de amigos. Sempre que saía na rua, ao encontro do sol, sua pele se avermelhava, e suava por todos os lados. Eu o conheci ainda muito novo, quando seu cabelo era comprido, e sua barba estava apenas começando a nascer. Sempre nos demos muito bem, tão bem que causávamos inveja às outras pessoas do bairro.
            Ah! O bairro! Como pude me esquecer de falar do bairro?! Nessa época, morávamos em Cubatão, uma pequena cidade no litoral paulista. Foi lá que eu vi Rafael Gonçalves nascer. E veja bem, eu não somente o vi nascer, eu o fiz nascer! Sim, sou médico, meu verdadeiro nome é Eduardo, mas sou mais conhecido como “Doutor Marmota”, graças a uns moleques do bairro que me colocaram esse maldito apelido. Cansei de arranjar brigas nas ruas quando ouvia algum engraçadinho dizer:

            -Bom dia Doutor Marmota!

            Nunca entendi o motivo do apelido, mas creio que é graças a meu modo de andar. Bom, deixemos essas bobagens de lado, pois não é sobre isso que falarei nesse capítulo!
            Eram meados da década de 50 quando ajudei Rafael, o pequeno Rafael, a vir ao mundo. Foi um parto difícil, que acabou por fazer uma vítima, Dona Josefa, a mãe de Rafael. Fiz tudo o que pude, isso posso garantir... Fiz mesmo! Porém, aquela pequena alma expirou, em despeito a todo o meu trabalho! Ainda era época de partos em casa, sem qualquer recurso maior que panos molhados para estancar o sangramento. Ainda mais aqui, no bairro. Ela teve uma grande hemorragia, que não consegui conter. Nada fazia efeito. Cheguei a pensar que perderia a criança e a mãe. O pobre menino nasceu com o cordão enrolado no pescoço, mas graças a sua tia, que realmente não sei o nome, ele sobreviveu. Nunca vi uma mulher tão cheia de si, assim que a criança começou a sair, ela já guerreou com a natureza e salvou o sobrinho. Porém, eu não fui tão forte... a mãe expirou.

Dedicatória

Dedico essas minhas memórias ao responsável por todas as minhas alegrias e tristezas... a quem conseguiu fazer-me descobrir os verdadeiros significados das palavras amor, família, desamparo, traição e culpa. Dedico essas memórias a você, meu querido Rafael!

Pequeno Livro, ainda sem título.

Olá! A primeira série de postagens que farei será de um pequeno livro que escrevi logo após o Fugindo da Máfia. Ele é composto por 33 capítulos curtos, e não segue a linha policial. Resume-se, basicamente, a um padrinho que narra a história de seu afilhado. Como todo resumo, esse não é nem um pouco animador. A narrativa não é longa nem muito densa. Tentei - e acho que consegui - escrever uma espécie de diálogo entre o narrador e o leitor. Por isso, muitas vezes há um afastamento da norma padrão da língua. Esse afastamento é proposital.
Tentei mostrar, ao mesmo tempo, a visão que o padrinho tem do afilhado, que é baseada em emoções, e uma visão mais racional das ações do menino. Espero ter atingido o objetivo.
Postarei os capítulos lentamente... creio que em três semanas o livro estará postado aqui em sua integridade. Realmente espero que vocês gostem da leitura e que comentem, independentemente de qual seja a sua opinião. Críticas construtivas, positivas ou não, serão aceitas de peito aberto. Mas, se preferirem, façam críticas destrutivas... respeito o direito de vocês me desrespeitarem... xD